domingo, 29 de março de 2015

Aquilo que se carrega...

Mais uma vez, minha vida mudou. Dizem que a vida tem ciclos de três, cinco ou sete anos. Nesse momento, vivo uma mudança de três anos. Bem, na verdade, não são bem três anos, assim, fiz umas contas rápidas, acho que é esse ciclo, mas enfim, não há um rigor temporal que sirva de parâmetro de ciclos de vida, eu apenas reproduzi uma ou outra fala que a gente acaba encontrando nesses blogs de auto-ajuda por aí. Como qualquer outra coisa nesse blog, tudo não passa da vista de um ponto.
Outro dia tive uma experiência interessante. Foi quase um momento de Alice através do espelho. Eu, adulta de referência. Não me acho referência de nada, mas... Agora eu trabalho com adolescentes no início da adolescência. É um trabalho interessante, numa avaliação inicial. Deixe-me contar essa história.

A menina chega ostentando um bico de três metros e se joga na cadeira da secretaria. Eu, já na vibe pedagógica curiosa que me cabe, pergunto pra menina qual era o motivo que a levava a sentar de maneira tão furiosa. “O professor mandou eu subir”, disse ela, sem olhar para mim. Levanto a sobrancelha – na verdade, levantei as duas, nunca consegui e sempre invejei quem tem o controle das sobrancelhas. Acho tão bacana... Enfim, expressei minha inquietação com a resposta pouco esclarecedora e pedi maiores explicações. Ela falou, ainda sem olhar pra mim, daquela maneira irritantemente comum aos adolescentes, que o professor pediu para que ela corresse e ela não queria correr. Questionei o por quê. Ela disse “Porque não”. Respirei. Provoquei – porque sou dessas – dizendo que ela deveria ter corrido, afinal, era aula de educação física. Ela revirou os olhos e deu um resmungo. Sangue sobe, respiro, sangue desce. Termino de fazer o que estou fazendo e a chamo para maiores esclarecimentos. Ela se aproximou, naquela atitude de enfrentamento. Digo que nem adiantava aquilo, que iríamos conversar e ela poderia me explicar a situação direito. Aí ela começa a chorar. E eu escuto que o real motivo para aquela recusa em correr era, simplesmente, o seu peso.
“Marcela, eu não corri porque eu sou gorda.” Entre lágrimas e soluços, ela vai me explicando que não queria correr na frente dos colegas, tinha medo de sofrer com comentários acerca do seu peso, do seu corpo. Uma simples menina, impedida de realizar uma tarefa simples na aula de educação física por medo de ser julgada pela sua aparência.

Foi aí que eu percebi que o problema não era comportamental, ou de enfrentamento e rebeldia adolescente. Parada na minha frente, uma menina linda, mas que sofria pelo fato de estar acima do peso. Desarmei o bote pedagógico e resolvi somente escutar aquele coraçãozinho agoniado. Fomos andar pela escola. Enquanto caminhávamos, ela ia desfiando uma história com tantas situações conhecidas por mim, de sentimento de inadequação, medo e angústia. Aquela menina, com a qual eu já me identificava a essa altura, estava completamente perdida nesse mundo de padrões estéticos severos e tentações ululantes, sofrendo por não conseguir se adequar àquilo que era vendido como ideal. Filha de pais obesos, moradora de comunidade carente, num mundo de amigas magras e garotos cruéis, olhava para as revistas de moda e pensava “Se eu fosse magra, seria mais feliz”.
E eu, do alto dos meus trinta anos que não valiam de nada, percebi que ainda tinha o pensamento idêntico a uma menina de treze anos no que diz respeito ao sentimento de inadequação. Mas, por ser a adulta da conversa, não poderia simplesmente concordar e chamá-la para afogar as mágoas em um brigadeiro na padaria ali na esquina.

Ali, naquele momento, eu poderia fazer diferente. Mostrar a ela que todos os impedimentos só existiam naquela cabecinha, que o peso não era motivo de infelicidade, que a adolescência era um período de muitas incertezas, muitas descobertas, muitos tombos, muitos acertos. Porém, se realmente quisesse emagrecer, primeiro  deveria se aceitar da maneira como ela é: Gorda.
Ela não entendeu. Expliquei que não era simples, mas que era exatamente por se amar que conseguiria ter coragem para a mudança. Se continuasse negando a si mesma, odiando o seu corpo e detestando sua condição, não conseguiria descobrir sua motivação. Contei minha estória com a balança. Ela fez um “uau”. Uau, para mim, foi um grande elogio.
Para finalizar, retomamos o problema inicial com a aula de educação física. Reincorporei a pedagoga. Expliquei que ela não poderia se recusar a participar, pois principalmente naquela disciplina ela iria encontrar ferramentas para o objetivo de emagrecimento. Fomos para a quadra falar com o professor, que entendeu o problema e reiterou a minha fala. Um pedido de desculpas pela atitude inadequada e a adolescente voltou para a aula. E eu voltei para o meu trabalho.

No entanto, não era mais a mesma. Tinha um pouco de mim nela. E ela tinha deixado um pouco dela dentro de mim. 
Aquilo que se carrega quando a vida muda.

4 comentários:

  1. Bacana. Fez a diferença na vida da menina. Deve ter sido bem gratificante

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    1. Foi nada... depois eles fazem uma besteira e você acaba pensando "onde fui amarrar meu burro..."

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  2. Goste de ver na prática a sensibilidade e o tato com que lidou com o problema...caminhos que fazem a diferença!

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  3. Me fez lembrar de uma frase... "Eu sou a soma de tudo que vejo" ou "Eu sou a soma dos que vieram antes de mim"..

    Sei lá, pois guarda algo como um ciclo.
    Como se tivesse que estar ali ou sua vida foi preparada para esse momento.

    Se pelo menos eu fosse religioso isso faria sentido... rs

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